RECEITA DE FELICIDADE por Paula Santisteban
Diretora artística do Música em Família, cantora e compositora
É muito bom voltar no tempo e buscar na minha caixinha de memórias o processo de criação do Receita de Felicidade. Essas lembranças me levam direto à essência do Música em Família, ao nosso sonho lá no início, quando tudo começou.
No dia 9 de dezembro de 2003 fizemos nosso primeiro espetáculo e a partir daí seguimos nos apresentando em mais de 250 escolas, até 2008. Essas experiências musicais interativas com criança, família e educadores, transformaram nossa forma de ver esses personagens do processo educativo. Eles passaram a ser parte da nossa história e nós da deles.
Eu, pessoalmente, visitei mais de 400 instituições de ensino, perambulei por todos os cantos da cidade e do interior de São Paulo. Parecia uma viajante, uma ambulante, que buscava saber mais, queria descobrir como as escolas eram por dentro. Essa era minha rotina, fiz muitos amigos, tive conversas intermináveis acompanhadas por café e bolo quente, aprendi muitas coisas e, principalmente, percebi formas diferentes de pensar a educação. Brinco que conheço as escolas pelo cheiro, pelo som, pelas cores, pela forma como sou recebida logo na portaria. E até hoje, quando entro pela primeira vez em uma escola, ainda sinto que sou a mesma desbravadora… fico em silêncio, observo o lugar, as pessoas, a arquitetura, o pátio, os brinquedos, a cantina, as salas de aula, os trabalhos espalhados pelo corredor… a cada visita, um mundo a ser descoberto.
Experimentar tudo isso trouxe em minha direção quereres e lacunas a serem preenchidos. Apesar das diferenças entre cada ideologia, encontrei algo em comum no discurso de quase todos os educadores com quem conversei: a importância da presença dos pais no processo de formação dos filhos, principalmente, na infância. Quando voltava dessas andanças, eu e o Eduardo Bologna conversávamos muito sobre essas questões. Essa experiência nos inspirou como artistas e, então, desviamos nosso olhar para esta causa. Começamos a compor, a escrever poemas, a criar trilhas sonoras e a imaginar experiências que pudessem unir essas três pontas: criança, família e escola, por meio da arte. Assim, surgiu nosso primeiro projeto, Receita de Felicidade, que como o próprio nome diz, passou a ser a receita da Coleção Música em Família.
Nesta mesma época li um artigo muito interessante de um psicanalista americano, de cujo nome não me recordo, intitulado: “A felicidade pode ser ensinada na escola?”. Devorei aquele texto e fiquei instigada, comecei a pensar naquele assunto incessantemente. Não cheguei a uma conclusão e nem encontrei respostas para as perguntas dele, ao contrário, acabei ficando mais curiosa. E, então, surgiram mais perguntas: Será que existem ingredientes para transformar um dia normal em um dia especial? A liberdade estaria ligada à felicidade? Foi tão interessante tentar descobrir as respostas… fiquei imaginado o quanto esse processo de buscar a felicidade já poderia ser bem prazeroso, dedicar-se a transformar a rotina em algo mágico poderia se tornar uma lembrança para ser revisitada sempre.
A palavra receita também é usada no universo da culinária como um processo ligado ao ato de preparar alimentos. A gastronomia, por sua vez é uma arte ligada ao prazer de comer e de compartilhar a comida. Por muitos motivos, pelo menos para mim, pensar nisso me levava à Europa, mais propriamente à França. E o som que surgia dentro da minha cabeça era o jazz francês, é claro. Essas coincidências me pareciam fantásticas! De repente, todas as pontas se uniram e formaram um quebra-cabeça gigante! Faltava uma única peça e ela estava nas mãos do Edu. Ele havia comprado um instrumento novo e não parava de tocar, de lá pra cá, de cá pra lá, ficava tocando todo o repertório de um músico belga, Django Reinhardt, jazz francês, jazz cigano, jazz manouche…
Eureca! Nascia o Receita de Felicidade.
Compusemos Maçã do Amor e Segredo de Família e o Edu compôs quatro trilhas sonoras que, mais tarde, se transformariam nas outras quatro canções. Com toda essa música rodeando nosso dia a dia, resolvemos trazer mais gente para ajudar a criar a proposta gráfica. Levamos a ideia para Selma Bologna, que trouxe referências para a concepção plástica do livro e, em seguida, iniciamos os trabalhos com o ilustrador Hernani Rocha Alves. Nossa principal fonte foi o estilo Art Nouveau e, também, animações, filmes e hábitos da cultura francesa.
A primeira imagem da capa surgiu em preto e branco, desenhada a lápis, então, o Hernani a coloriu em tons de marrom, azul claro, verde escuro, vinho e amarelo, com uma linguagem infantil. A cena de abertura foi pensada para criar uma conexão da criança com o livro, um convite para que ela participasse como personagem principal. Em seguida, surgiu a imagem de um chapéu de chef, com espaço para que a criança escrevesse o próprio nome e de um espelho que sugerisse um autorretrato ou a colagem de uma foto. Enfim, juntamos a música com as artes gráficas e criamos um cenário e uma trilha sonora para que a criança pudesse viver e inventar a própria história. Assim, a criança seria o chef, ou a chef à procura da receita secreta, com ingredientes para se sentir feliz.
O material foi pensado de maneira que a personagem principal se sentisse estimulada a convidar pessoas queridas para interagir com ela de diversas formas: vivendo histórias novas, brincando juntos, sentando em volta da mesa e conversando sem ter que ir longe, nem marcar hora para isso… como se fosse um passeio por um dia inteiro, desde a manhã até a noite, revisitando lugares, como a própria casa ou a escola, com um olhar mágico. O quintal seria o lugar ideal para um piquenique, a sala se transformaria em um estúdio de cinema; a cozinha, em um parque de diversões; o banheiro, em um laboratório; o quarto, em uma máquina do tempo e a sala de aula em uma cozinha de um bistrô. Enfim, o que a imaginação pudesse criar!
Desde 2008, ano em que foi lançado, tenho tido a sorte de ver como os educadores e as famílias vivenciaram o Receita de Felicidade. Vi milhares de crianças vestidas de chef de cozinha, inúmeras receitas de felicidade da turma, livros gigantes repletos de receitas das famílias com desenhos e caligrafias dos avós, corais cantando Segredo de Família, piqueniques com toalhas vermelhas, muita Bagunça na Cozinha, lanches comunitários, chás dos avós, festas do pijama, cineminha na praça com os pais e muita mão na massa, pois Tudo Acaba em Pizza. Hoje, como parte da coleção, o projeto ganha novo formato e novas propostas educativas, além de mais espaço para as crianças e os educadores se expressarem.
Desejo que todos os educadores recebam esta joia em suas mãos da mesma forma que eu e o Edu a recebemos, com muito amor e delicadeza. Receita de Felicidade é um projeto doce, carinhoso, elegante e alegre. Assim, como uma boa sobremesa, ou um prato especial, deve ser degustado com calma e atenção. Se eu pudesse sugerir um passo a passo, ou um menu degustação, seria assim: em primeiro lugar ouvir o disco, depois folhear o livro e, então, imaginar o projeto acontecendo na escola. Assistir a filmes que vimos, ouvir músicas que ouvimos e procurar saber mais sobre a cultura francesa também pode inspirar. Além disso, que tal preparar um jantar especial, ou convidar os amigos para um piquenique, ou para uma festa surpresa, ou até se deliciar com seu prato predileto? Tudo isso pode ser uma experiência sensorial incrível! Descobrir como se faz para ser feliz pode ser a sua própria Receita de Felicidade.
Muitos encontros, festas e cantoria!