RECEITA DE FELICIDADE por Eduardo Bologna

Diretor musical do Música em Família, músico e produtor

 

O conceito musical de Receita de Felicidade foi concebido com a finalidade de criar uma atmosfera suave, com toques de música francesa, italiana, brasileira e norte-americana, mas principalmente em torno de um estilo musical muito popular nos anos 1930 chamado Jazz Cigano.

No entanto, para entendermos melhor este estilo musical e o pensamento artístico dos anos 1930, precisamos compreender que a humanidade vivia um momento histórico sem precedentes. O fim da Primeira Guerra Mundial, a quebra da bolsa em 1929, o crescente desemprego e violentos confrontos motivados por salários e direitos trabalhistas, contrastavam com o surgimento de figuras da cultura pop como Greta Garbo, Clark Gable, King Kong, Tarzan e Fred Astaire. No cinema, Charles Chaplin lança “Luzes da Cidade” e “Tempos Modernos”, enquanto na pintura consolidam-se nomes como Salvador Dalí, Kandinsky, Mondrian e Miró. O mundo assiste incrédulo a concretização de sua maior edificação, o Empire State Building, quase ao mesmo tempo em que Franklin Delano Roosevelt é eleito presidente dos Estados Unidos, Getúlio Vargas assume o poder no Brasil e Adolf Hitler é nomeado chanceler alemão.

Em meio a tudo isso, a cidade de Paris não apenas acolhia os mais incompreendidos e complexos pensamentos como também os realimentava. Movimentos como Cubismo, Modernismo e Surrealismo misturavam-se com os pensamentos de alguns dos mais importantes e marcantes nomes da história como Marx, Hemingway, Oscar Wilde, F. Scott Fitzgerald e Henry Miller, tornando a “cidade luz”, o ponto de encontro de poetas, músicos, escritores, pintores, bem como outras infinidades de artistas e intelectuais de todos os lugares do mundo, que afloravam seus sentimentos e suas percepções em infindáveis discussões em torno das mesas de românticos bistrôs e cafés parisienses, concebendo este universo único de excelência e bom gosto, ao som da nova música vinda de artistas norte-americanos, traduzida para os ouvidos europeus por brilhantes músicos franceses de origem cigana.

O Jazz Cigano, Jazz Manouche, ou ainda Jazz Francês é um estilo musical originário de Paris e seus arredores, onde na década de 1930, músicos de várias regiões da Europa reuniam-se para tocar canções tradicionais da cultura cigana e do Leste Europeu, juntamente com os sucessos populares da época. No entanto, como estes músicos apresentavam uma linguagem musical muito peculiar, suas interpretações para standards de Jazz passaram a atrair os olhares de entusiastas e intelectuais, espalhando para a América do Norte e outras capitais da Europa esse conceito de improvisação e harmonização. O principal nome deste estilo musical foi o grupo “Quintette du Hot Club de France”, formado pelo guitarrista belga “Django Reinhardt” (1910-1953) e pelo violinista francês “Stéphane Grappelli” (1908-1997). Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, o grupo se dispersou e seus integrantes espalharam-se pelo mundo. Ainda hoje, descendentes da cultura cigana e outros apaixonados perpetuam a música de Django com grande fidelidade, nomes como “Biréli Lagrène”, “Angelo Debarre” e “Stochelo Rosenberg”, ao lado de grupos de música pop francesa como “Paris Combo” são boas referências desta tradição musical.

 

No cinema, podemos perceber forte influência do Jazz Francês em inúmeras trilhas sonoras, valendo destacar o trabalho de “Yann Tiersen” em “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (Amélie From Montmartre), “Ben Charest” em “As Bicicletas de Belleville” (Les Triplettes de Belleville) e “Dick Hyman e Howard Alden” em “Poucas e Boas” (Sweet and Lowdown), sendo este último um filme de “Woody Allen” inspirado em passagens cômicas da vida de “Django Reinhardt”.

 

Tecnicamente, alguns elementos típicos do Jazz Cigano são a improvisação fortemente calcada em ideias melódicas sobre escala menor harmônica e outras sonoridades herdadas das raízes indianas do povo manouche, vibratos exagerados provenientes da execução violinística cigana e a presença de instrumentos basicamente acústicos, como o Contrabaixo, Violino, Acordeon, Clarinete e principalmente a Guitarra Cigana, instrumento mundialmente popularizado por Django. O som de violão “anasalado” que você ouve no CD “Receita de Felicidade” é uma Guitarra Cigana e certamente não poderia ser reproduzido por qualquer outro violão ainda que com características semelhantes, pois algumas peculiaridades na construção deste instrumento fazem com que a sua sonoridade e tocabilidade sejam únicas. Pequenos detalhes como um encordoamento específico e até mesmo o tipo de palheta, devem ser cuidadosamente respeitados para que tenhamos uma sonoridade próxima ao instrumento originalmente construído por “Mario Maccaferri” em 1931, conhecido como Selmer Maccaferri por ter sido comercializado com grande sucesso por esta companhia francesa.

No entanto, a Guitarra Cigana é apenas um dos elementos que constroem a atmosfera musical de “Receita de Felicidade”. Instrumentos como Bandolim, Escaleta, Piano, Órgão Hammond, Cravo, Celesta, Pump Organ, Mellotron, Vibrafone, Litofone, Xilofone, Sinos, Rabeca, Tuba, Fagote, Trompete, Harmonium Indiano, Contrabaixo Acústico e Cordas são fundamentais para compor a sonoridade final deste trabalho. “Receita de Felicidade” tem elementos de diversas culturas musicais, com influência de música francesa, italiana, brasileira e norte-americana. Todas as faixas foram compostas originalmente para este Livro CD e distribuídas em seis canções, seis textos com trilhas e seis versões instrumentais dos temas.

 

As melodias e as interpretações de Paula Santisteban também foram conduzidas para este universo lúdico e suave que parte da música francesa para sonoridades mais ecléticas. Basta examinarmos de perto o conteúdo das canções para compreendermos quão distante nos encontramos de uma sonoridade especificamente jazzística. “Tudo Acaba em Pizza”, por exemplo, lembra uma canção napolitana com toques de “Ennio Morricone”, “Segredo de Família” é praticamente um Charleston, “Chanson D’Amour” é uma valsinha francesa com toques de “Chiquinha Gonzaga”, “Bagunça na Cozinha” sofre grande influência harmônica de canções folclóricas do leste europeu enquanto “Maçã do Amor” e “Matinê” reforçam a sensação de “Anos Dourados” presente em todo o trabalho.

Propositalmente, para que a criança se habitue com os temas, os textos são acompanhados de variações instrumentais das canções e em uma segunda etapa deste CD, seis versões instrumentais são apresentadas. Estas versões chamadas sugestivamente de “Trilhas Sonoras” podem servir como fundo musical para os mais variados momentos, desde atividades em classe até uma refeição em família.

Os educadores também podem contar com um material de apoio criado por mim, com o direcionamento de Paula Santisteban e a consultoria dos professores de música Selma Bologna e Rubens Santisteban. Este material é dividido em dois tipos de aplicação:

  • Partituras com melodia e acordes.
  • Letras com as cifras facilitadas.

Estas partituras não tem o objetivo de servir como um songbook, nem mesmo uma transcrição exata das execuções musicais no CD “Receita de Felicidade”, pois entendemos que um material como este seria excessivamente complexo para o propósito. O mesmo acontece com as cifras e os acordes facilitados que foram cuidadosamente adaptados para não perder sua função harmônica. Em função de um estudo um pouco mais elaborado ou até mesmo algum tipo de consulta, apresentamos as notações com os acordes completos, com as mesmas extensões e inversões utilizadas nas partituras dos músicos. De qualquer maneira, vale ressaltar que o estilo e as improvisações permitem inúmeras variações tornando em certos momentos a partitura apenas um ponto de referência para a harmonia central, sendo esta uma prática muito comum a músicos de Jazz e outros estilos musicais onde o improviso e a re-harmonização acontecem com frequência.

Sobre a realização de “Receita de Felicidade”, em maio de 2008, as gravações aconteceram simultaneamente em São Paulo e no Rio de Janeiro, através de inúmeras trocas de arquivos pela internet entre eu, Paula Santisteban e Roberto Pollo. Assim que a Paula colocou as vozes guias nas canções, eu e Roberto mergulhamos de cabeça na instrumentação do disco. Eu gravava os instrumentos de cordas e criava a estrutura dos arranjos, em seguida enviava estes arquivos para o Roberto que em poucas horas devolvia o material com suas contribuições… daí por diante, fazíamos mais duas ou três rodadas deste bate-bola em cada tema… aos poucos o processo foi ganhando tamanha sintonia que até mesmo os improvisos acabavam por modificar a intenção dos arranjos originais e em pouco mais de uma semana já tínhamos toda a parte instrumental do trabalho realizado. Durante este processo, algumas canções ganharam suas letras definitivas e quando finalmente a Paula colocou as vozes finais do disco, todos ficamos apaixonados e incrivelmente satisfeitos com o resultado do trabalho.

Por fim, esta é a nossa “Receita”! Para nós, músicos, ela se revela através de sons e palavras, com dois ingredientes fundamentais que são o amor e a dedicação à arte. E você, já parou pra pensar qual seria a sua? Ao longo desses anos temos tido a imensa sorte de receber mensagens, imagens e inúmeras outras formas de expressão artística que revelam os sentimentos dos professores, das famílias e das crianças. Podemos garantir que os ingredientes são os mais simples e mais sinceros possíveis, mas apesar disso, nenhuma receita é verdadeiramente igual à outra… assim como a música, tem sempre um toque mágico que faz com que ela seja única. Espero que estas canções possam servir de inspiração e que ao final desta viagem você também se surpreenda com a sua própria “Receita de Felicidade”.